quarta-feira, 31 de março de 2010

Violentados


Terça feira a noite, um documentário sobre a África passa na TV. Vejo um homem demonstrar a sua indignação, conta a história do irmão morto pela polícia em uma noite qualquer. Entraram em sua casa e o mataram, sem julgamento. Pode-se ver a ira naqueles olhos negros, sua pele também negra, o corpo é forte, tem que ser. O passado de exploração e abusos fez daquele um povo forte e resistente, mas em seu olhar é possível ver além da fúria, o cansaço.

Pendurado na parede da sala de outra casa simples no Camarões um retrato preto e branco em uma moldura de madeira é limpo cuidadosamente por uma senhora. Ela sente saudade do marido, sua filha muito pequena pergunta com freqüência:

- Quando o papai volta?

A filha mais velha responde.

- Quando as pessoas morrem elas não voltam. O papai não vai voltar.

Mesmo assim ela sempre volta a perguntar.

Uma noite o marido estava dormindo e a senhora dando de mamar à sua filha quando a polícia bateu em sua porta. No primeiro momento achou que eram bandidos. A polícia entrou na casa, tirou o homem da casa, do lado de fora estavam um irmão e um sobrinho do homem que eram seus visinhos. Perguntaram a mulher o que ela fazia e ela respondeu que dava de mamar. Eles revistaram a casa, entraram em outro quarto em que só havia meninas e saíram. Os homens nunca mais foram vistos desde então. A senhora afirma que teve sorte. Se não estivesse amamentando eles a teriam levado também e se houvesse um garoto na casa ele também seria levado. Essas histórias realmente aconteceram e vão continuar acontecendo. Diversos países no continente estão imersos no caos. Existem milhares de pessoas na Namíbia que não conseguem emprego, não tem comida para dar a seus filhos e tentam cruzar a fronteira para a África do Sul onde as condições de vida são melhores. A África do Sul recebe algumas dessas pessoas, mas o país não pode receber a todos. Coisas cruéis acontecem nessas fronteiras, pessoas morrem. E os europeus desgraçados que são os responsáveis pela ruína desses países onde estão? Os putos deveriam indenizar essas nações que eles violentaram e continuam a fazer dando as costas para essa realidade, para suas responsabilidades. Hoje o povo é violentado por seus próprios governantes e autoridades sem caráter. O que os ricaços do mundo estão esperando para ajudar? Uma catástrofe natural? Os olhares da mídia mundial caírem sobre esses países?

O Brasil também continua sendo violentado. Hoje por transnacionais, e o pior é que isso é feito com apoio do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social. Tenho que admitir a ironia do nome, o banco financia projetos voltados para monocultura de cana de açúcar e eucalipto, exploração do minério, siderúrgicas, hidrelétricas, projetos que afetam de forma profunda e direta a vida de indígenas, comunidades quilombolas, ribeirinhos, pescadores, trabalhadores do Brasil, Equador, Bolívia. O banco aumenta o lucro de um grupo reduzido de empresas de capital nacional e internacional e causa prejuízos sociais e ambientais para o país. Falta transparência, compromisso com as pessoas, os discursos políticos são muito diferentes das ações práticas. E com esse cenário no Brasil e no mundo os porcos não são capazes nem de esperar o período de eleição para começar a fazer campanha, ávidos por mamar no seios da pátria mãe gentil.

segunda-feira, 29 de março de 2010

Por minha conta


Estou de pé diante da minha janela, a noite é fresca, a sensação agradável, a vista é linda. Por aqui noites assim são raras e quando ocorrem é algo a ser contemplado. Daqui dá para ver a ponte toda iluminada, poucos carros transitam em uma quinta-feira chuvosa. A cidade está tranqüila, ao fechar os olhos consigo ouvir o coaxar de pererecas. A única luz que entra em meu quarto é a que vem da cidade, o vento é tranqüilizador, traz promessas de uma noite fresca. O chuvisco sobre o asfalto, um filete de água que escorre pela rua, o silencio. É como se a cidade fosse um organismo vivo e pudesse relaxar por um momento. Eu relaxo... Deito na rede e continuo a contemplar a cidade. Nosso estado de espírito parece ser o mesmo. A cidade me aceita como parte dela, me sinto em casa. Ficaremos juntos por um tempo, embora não saiba quanto. Meus caminhos já bem definidos, ao menos até certo ponto, mostram que ainda teremos algumas histórias por vir. Minha vida aqui é simples, mas muito boa. Outras pessoas têm problemas muito maiores, eu não.

Minhas dúvidas foram levadas embora já faz algum tempo. A chuva e o conforto de meu quarto parecem lavar os resquícios de minhas inseguranças, é a prova de que eu estava certo no princípio, quando decidi vir para essa cidade. É bom estar certo de vez em quando, ainda mais quando nossa opinião e vontade vão de encontro à mentalidade vigente em nossa geração. Aqui fiz amigos, conheci culturas, hábitos que muito me agradam, vi coisas diferentes, botei em cheque certezas antigas. Vivo com algumas privações sim, mas são supérfluas. Ter uma vida mais independente tem suas vantagens, é possível pensar por si só. Questionar valores familiares. É claro que a essência sempre estará lá. O objetivo não é botar tudo a baixo, mas é possível refletir sobre algumas questões, ver alguns pontos falhos e encontrar respostas bem particulares. Atenuar idéias conflitantes é reconfortante. O pensamento me deixa a vontade, a rede é confortável, a sonolência vem, me deixo levar, cochilo. Acordo pouco tempo depois não é mais um chuvisco que cai, o vento também aumenta, é hora de fechar essa janela e caçar uma cama.

sexta-feira, 26 de março de 2010

On the road


O velho está sentado no banco da praça abandonada às 3 da madrugada observando a chuva no horizonte que se aproxima. O vento frio já bate em seu rosto e ele se pergunta em que lugar irá dormir. Pega sua mochila velha, com mais remendos do que anos de idade, tira de dentro uma palha e um pouco de fumo, enrola o cigarro e o acende.


“É bom estar de volta, tantos anos sem ver a minha terra, hoje estou de volta e quem vem me saudar primeiro é a chuva, tão rara em certas épocas do ano! Sempre fiquei feliz ao ver a chuva e hoje não é diferente”.


Ao longe um grupo de cachorros passa, o pobre andarilho sempre valorizara a companhia de um bom cão, muitos o acompanharam durante suas caminhadas, muitos deles morreram ao seu lado, outros foram embora pela estrada da vida sem se despedir. Um novo amigo na sua antiga cidade viria a calhar. Começa a assoviar e logo todos os cachorros olharam para ele, alguns com esperança de ganhar algo para comer, uns poucos com desinteresse. Ele encara os olhos de cada cachorro, um por um vai baixando a cabeça num movimento de submissão, até que um vira-lata pequeno (um dos menores) e preto não vacila e devolve o encarar.


“É esse!”.


Durante um tempo, humano e cachorro mantém o olhar fixo, mas nunca com agressividade, os dois entendiam o que acontecia. Não era um jogo, não era uma disputa, era reconhecimento. Os outros cachorros foram indo embora, até que sobrou apenas o pequeno valente. Aí o andarilho tira de sua mochila um resto de marmita que havia ganhado por lavar o banheiro de um bar (acordo que ele costumava fazer sempre que a fome apertava, já lavara muitos banheiros imundos em sua vida...) e chama o cachorro para perto de si.


O animal, que não era nem um pouco burro, corre alegremente para receber a comida. O “vagabundo” divide a comida com o cachorro colocando um pouco no chão ao seu lado e deixando o resto dentro da quentinha para si. Os dois comem juntos selando aquela amizade. O velho sabia que agora o cachorro não sairia do seu lado por um bom tempo.


-Vou te chamar de Raul, companheiro! – O velho diz enquanto afaga a cabeça do cachorro.


Raul fora o nome de todos os seus cachorros durante sua eterna caminhada.


-Vamos procurar um abrigo, a chuva já está bem perto.


O andarilho levanta e Raul vai atrás, encontram um prédio onde ficam debaixo. Quando a chuva aperta pra valer o velho aproveita para tomar um banho. Tira suas roupas velhas, mas que estavam longe de serem trapos, ficando apenas de cueca. Pega dentro da mochila um sabonete e vai para chuva tomar seu banho. O cachorro fica olhando de baixo do prédio até que decide acompanhar seu novo amigo. O velho dá um banho no cachorro também, aproveitando o ânimo do animal para entrar na chuva. O cachorro aceita bem o banho.


-Somos andarilhos e não mendigos, certo Raul?! – e começa a cantar “Have you ever seen the rain”.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Cotidiano




Uma manhã chuvosa, ele acorda, sente o cheiro dela antes de abrir os olhos. É um dia preguiçoso... o cheiro do corpo dela flui até ele, não precisa de mais nada para saber que está em casa. À noite ela sente frio e procura por seu corpo, ela o abraça, põe a cabeça sobre seu peito, a sensação é boa. O quarto é pequeno, eles estão começando uma vida. Contas para pagar, casa para arrumar, a correria do dia a dia, estresse, TPM, as coisas não são fáceis, mas podem ser simples. A estrada foi longa... árdua... e ainda será, mas eles finalmente se encontraram. São pessoas completas individualmente, um poderia muito bem viver sem o outro, mas por que fariam isso? Suas vidas são mais coloridas assim. Ele abre os olhos e a observa dormindo, respiração lenta, a tranqüilidade de seu rosto é reconfortante. Ele lhe dá um beijo na testa com cuidado para não acordá-la, sai da cama de fininho, pega uma camiseta velha e vai até a cozinha fazer um café. Como ela prefere forte, que seja forte. Na pia da cozinha algumas louças da noite anterior e três latinhas de cerveja amassadas, duas para ele, uma para ela. Em vinte minutos o café está pronto e a louça limpa, ele não quer incomodá-la. Mas como não atender a um desejo dela? Chega com cuidado na cama e lhe beija o pescoço.

- Bom dia meu amor.

Ela se vira lentamente e o olha com um sorriso preguiçoso.

- O que foi? Aquela latinha de cerveja foi demais para você?

Ela conhece aquele tom.

- Vai sonhando. Só deixei a outra para você por caridade. Você sabe como eu sou...

Ele abre um sorriso torto.

- Sua fé na humanidade sempre foi seu ponto fraco, sorte a minha.

- Que horas são?

- São seis da manhã. O café está pronto e vou pegar aquele pão quentinho para nós.

Ele lhe dá um selinho e sai.

Seus trabalhos, rotinas e alguns pensamentos são diferentes. Muitos diriam que estão apaixonados. Eles sabem que não é simples assim, nunca foi para eles. Ele sabe da importância da diversidade e ela do valor humano. No fundo eles concordam, vêem coerência um no outro, se complementam e acreditam que suas vidas são mais interessantes assim.

Música também emburrece


Hoje é dia de ficar na praia que fica na frente do meu hotel. O tempo não é dos melhores, não vale a pena ir para lugares melhores para pegar chuva e a ressaca impede uma longa caminhada.

Paro numa barraca que já tinha ficado, ali sento, peço uma água com gás e curto a vista, que apesar de chuvosa continua linda. A música não está boa, lembro que no dia anterior havia tocado Zeca Pagodinho então chamo o garçon:

-Gerônimo! Vem aqui, rapidinho!
-Fala!
-Então Gerônimo, tem como colocar um Zeca Pagodinho?
-Não sei se tem...
-Têm, tocou ontem...
-Vou ver lá!

Ele vai para a barraca e logo começa a tocar as músicas do artista que eu havia pedido.
Eu, cantando baixinho, relembro uma conversa que tinha tido com um outro Brasiliense no dia anterior. Conversávamos sobre a situação política de nossa cidade, eu manifestando minha costumeira indignação e ele me choca afirmando que votaria novamente no governador que se encontrava encarceirado por bandidagem.

A vista não combina com tamanho desgosto, então resolvo pensar noutra coisa... deixo as ondas e o Zeca levarem meus pensamentos para lugares bons. Até que uns caras que se sentavam na barraca do lado chamam o Gerônimo:

-Garçon!!!!
-Pois não?
-Cara, aqui só tem gente jovem, tira essa música de velho aí, coloca um chiclete aí!

Gerônimo tem que agradar seus clientes, entra e troca por uma banda cover da banda de axé. Os garotos dão os gritinhos satisfeitos de ouvir, provavelmente, as músicas que estavam escutando antes de chegar na praia e as que ouviram na farra da noite anterior.

Não me levem a mal, não curto Chiclete com banana, mas também não tenho nada contra a banda ou de quem gosta dela. Mas eu costumo ter raiva de gente ignorante!

E outra, ser jovem não é desculpa para ser estúpido ou acéfalo! Se você não é capaz de compreender qualidade musical ou importância cultural fique calado! Ou se instrua! Não que eu seja um grande conhecedor de música ou da nossa cultura (e o Brasil é um país tão rico culturalmente que ninguém nunca será um grande conhecedor dela), mas eu tento manter a cabeça aberta.

Se esses garotos perdessem menos tempo pensando nos números de mulheres que eles beijaram na noite anterior e talvez pegassem um livro, ou um bom disco de um bom artista, talvez eles entenderiam que algumas coisas são atemporais! Afinal de contas uma hora a música vai parar e alguém vai conseguir ouvir as asneiras que eles têm para falar!

quinta-feira, 11 de março de 2010

Caminhe com minhas botas


“Puta que pariu, que cansaço. Esse sol está castigando hoje...“ Ele caminha após uma grande manhã de trabalho. Às vezes os dias parecem mais longos, às vezes mais curtos. Já fez trabalhos bem mais cansativos. “ O cansaço às vezes nos pega em uma tarde de domingo, que é apenas mais um dia de campo, de cão... “ Ele chega perto do balcão de madeira envelhecido pelos anos, tira um prato e caminha na direção da comida. “O cheiro é agradável” o homem é simples, seu gosto tinha que ser simples. Mas por que às vezes ele se sente tão cansado? “Caralho, minhas costas estão doendo” Pode ser saudade.. amigos, família... A cor da pele é morena, o sol não perdoa. A barba? Já cobre a cara toda... Alguns o invejariam pelo estilo de vida. “Bom, pelo menos chegamos cedo hoje.” Quatro horas de sol na parte da manhã. E ele é o sortudo. “A galera de pequenos deve tá andando e cozinhando com essa lua...” Tudo tem seu preço. Bem o estilo de vida é esse, se você for... o cara certo para o trabalho.

“Vi uma preguiça hoje!” . Uma barragem vai ser construída em um ponto acima do rio “Espero que a barragem não mude muito as coisas por aqui” ele sabe que as coisas vão mudar. Vai morrer bicho... ele torce para estar enganado. “Dois Inia geoffrensis saíram diante dos meus olhos de novo hoje...” termina de servir a comida e caminha tranquilamente até sua mesa, pede uma cerveja para acompanhar. Ele come, a comida é boa. Sua barba, cabelo e roupas sujas incomodam uma senhora que o encara com uma careta “ essa cocha de frango está melhor do que eu pensava” A dona do restaurante e a moça que servem as mesas o olham com um misto de simpatia e curiosidade. Talvez elas queiram alguém para conversar, para ser gentil. “que bom que vai rolar um tempinho para a digestão” A tarde promete. O tempo passa rápido demais, é hora de sair. O trampo chama são 12:50 “E que venha a tarde”

“Eu estou exatamente onde deveria” o local é uma mata de igapó, área que alaga na época das cheias. A vegetação sai da água escura, sombreia todo o local. Aves são ouvidas, um bicho grande cai na água "não deu para ver..." O local está muito alagado, mas ele e os dois moradores da cidade que conhecem a área chegam à terra firme. Pegadas de Anta, toca de tatu galinha, merda de capivara. “Essa área é foda!” vegetação perfeita, a não ser por uma estrada abandonada. “Finalmente uma floresta descente” A viagem valeu a pena, a tarde passa rápido demais, é hora de voltar. "A chuva vem em nossa direção." A voadeira prossegue inabalável. No caminho o igarapé bem preservado, a chuva ajuda a formar um cenário que deveria ser visto por todo o mundo, talvez assim as pessoas o entendessem... Ao final do dia encontra-se molhado e sujo, mas o cansaço não existe mais. Os pontos estão marcados e está tudo descrito em sua caderneta de campo. Não há muito mistério, basta ter vontade e estar lá. Na mata, no lugar certo, na hora certa. E que venha a próxima cidade, as próximas áreas, os próximos bichos, as próximas pessoas. “hoje foi um bom dia...” “talvez um dia as pessoas percebam que florestas são mais importantes do que barragens.” Ele sabe que não...