quinta-feira, 24 de março de 2011

Águas Claras

“Que sede!”

Ele abre as torneiras sabendo que nenhuma gota de água sairá de lá, quer reforçar a situação drástica para seu próprio corpo.

“Está vendo, não sai nada!”

Se lembra que na verdade aquele era o motivo para estar naquele apartamento, os donos abandonaram o lugar assim que a água parou de chegar pelo encanamento. Tivera sorte de encontrar aquele lugar sem estar tomado.

Dá uma olhada no recinto escuro, com a luz de uma única vela e a brasa em suas mãos, as persianas fechadas. Abre um pequeno orifício numa delas para ver o lado de fora.

“Ainda tenho um ou dois dias até o fogo chegar”

Meses atrás chegara ali e ainda não era época de seca, os gigantescos prédios, que anos atrás eram condomínios fechados (muitos deles bem luxuosos), estavam infestados de mendigos, traficantes, ratos, lixo... Agora nem isso, o fogo os consumia!

Não sabe bem como aquele incêndio generalizado havia começado, sabia apenas que se aproximava e não havia nada a se fazer. O lixo acumulado pelos milhares de sem-teto que ali moravam facilitava demais a entrada do fogo aos prédios.

“Logo sobrará apenas um esqueleto carbonizado de uma cidade!”

Um sorriso amargo aparece em seus lábios.

“Aqui se chamava “Aguas Claras”, agora não há água e muito menos claridade, somente fumaça”

Começa a pensar em onde procurará por nova moradia. Os grandes centros do DF estão abarrotados, o resto completamente abandonado. Gama, Ceilândia, Taguatinga são praticamente as únicas cidades em que ele poderá se aventurar. Nem considera o Plano, ali ele não tem a menor chance, não com essas roupas, nem sem um banho...

“Ahhh, um banho!”

Onde poderia morar? Lembra de uma música que seu pai lhe mostrara ainda quando era adolescente, o refrão dizia: “Eu queria morar numa favela”. Tomava aquelas palavras como suas.

“Pobre do meu pai, não aguentou ver sua própria cidade ser tragada pelo furacão de merda em que as coisas se tornaram. Enlouqueceu! Onde será que está agora? Estará vivo? Deve estar, aquele cara era safo!”

Entra um gato pela janela, gato que tornara-se seu companheiro. J era seu nome, mesmo nome de um gato de seu pai, que morrera quando ele ainda era bem criança. O gato vem se esfregando à sua perna e miando.

-Foi mal amigão, hoje não encontrei nada, nem água. Vamos embora daqui amanhã, junte suas coisas, se prepare.

-Miiiiiiellllll.

-É, não queremos nos queimar...

“Vou para Taguatinga, é mais perto e tenho uns conhecidos lá, espero que me confundam por amigo e me ajudem”

Lembra da cidade em que crescera, Riacho Fundo, agora tomada por gangues armadas. Aquilo se tornara numa zona de guerra. Afasta o pensamento, lhe dói lembrar de como aquilo fora um dia...

“Antes as cidades satélites eram chamadas oficialmente por RA de regiões administrativas, agora devem ser chamadas de regiões abandonadas”

Lembra de uma época em que as diferenças não eram tão grandes, existia um grupo intermediário, agora parecia ser somente poucos ricos e um bando de palpérrimos. E os artistas nada faziam além de reclamar bonito, usando suas habilidades.

“O resto chora sem fazer canção, ou pintar quadros...”

De uma hora para outra decide abandonar aquele lugar, pega sua mochila, coloca J com sua cabeça para fora e sai. Antes de fechar a porta olha em volta.

“Amaldiçoou cada minuto que passei aqui, mas foi um teto sobre a cabeça, foram paredes que me protegeram”

Fecha a porta.

“Melhor andar, passaria a noite em claro mesmo. Andar me relaxa”

E sai cantarolando:

-”Se quer me seguir

Não é seguro

Hoje eu quero sair sóóó”

quarta-feira, 2 de março de 2011

Carta Pública ao Presidente

Excelentissimo senhor presidente Luís Inácio Lula da Silva, sou Biólogo formado pela Universidade de Brasília e tive a oportunidade de participar de trabalhos técnicos de estudo de impacto ambiental. O senhor gosta muito de levantar em seus discursos a questão da “perereca e o viaduto”. Então façamos isso da forma que deve ser feita. Para começar, os anfíbios são o grupo mais ameaçado da natureza, 32,5% das espécies estão em risco. A questão ambiental não deve ser tratada com descaso. A legislação federal protege espécies ameaçadas de extinção, por isso são feitos estudos de impacto ambiental e é necessário tomar medidas com intuito de minimizar os impactos das construções de Hidroelétricas, termelétricas, viadutos.

O problema senhor presidente, não são as leis de licitações ou leis ambientais, mas a pressa dos políticos em inaugurar obras antes das eleições. Em estudos de impacto ambiental que visam uma maior aproximação da real biodiversidade da área em que se deseja fazer um empreendimento é necessário levar em conta a sazonalidade, períodos de seca, chuva. No caso de rios, períodos em que o nível das águas começa a subir, cheia, vazante e seca porque a sazonalidade interfere na dinâmica das populações e por conseqüência no sucesso de captura das espécies. Portanto, realmente leva tempo. É claro que muitas vezes pressões políticas não permitem que o trabalho seja feito de maneira adequada.

Na biologia “Hotspot” é um termo usado para definir áreas prioritárias para a conservação que possuem um elevado número de espécies só encontradas na região e que sofrem com a intensa perda de habitat. Norman Myers em fevereiro do ano 2000 publicou um artigo na revista Nature, uma das mais respeitadas do meio acadêmico, abordando o assunto. No artigo aparecem dois biomas brasileiros. A Mata Atlântica, que hoje encontra-se reduzida a 7,6% de sua área original. Em 2008 pretendia-se construir a Usina Hidrelétrica de Tijuco Alto, apresentado pela Companhia Brasileira de Alumínio (CBA), do Grupo Votorantim. O empreendimento seria feito no Vale do Ribeira, maior remanescente contínuo de Mata Atlântica do país. O Empreendimento inundaria aproximadamente 11 mil hectares no médio e alto curso do rio. Felizmente a obra foi embargada. O segundo bioma trata-se do Cerrado que cobre cerca de 20% do território brasileiro e é dotado de uma grande variedade de habitats. No ano de 2009 o ministro do meio ambiente Carlos Minc informou ao jornal o Globo que no Brasil desmata-se mais de 20 mil quilômetros quadrados de Cerrado a cada ano. Por tanto senhor presidente não se trata apenas de uma simples perereca, mas da preocupação com a conservação da biodiversidade encontrada em território brasileiro.

O modelo energético brasileiro tem promovido impactos negativos também para populações ribeirinhas que além de serem retiradas de suas casas e modo de vida muitas vezes não são ressarcidas. Isso é tão sério que se criou o Movimento dos Atingidos por Barragens que lutam pela implementação de políticas públicas que melhorem as condições de vida em comunidades atingidas. No complexo hidrelétrico do rio madeira muitas famílias compunham sua renda com base no extrativismo tradicional relacionado à dinâmica sazonal do rio, as construções afetaram a dinâmica dos rios diminuindo a diversidade de peixes. Para piorar o consórcio Santo Antônio Energia proibiu a pesca em diversas localidades próximas a uma vila de pescadores.

A relação entre pessoas atingidas por grandes empreendimentos e empresas pode chegar a extremos como o caso do pescador Luís Carlos de Oliveira de 59 anos que faz parte do Programa Federal de Defensores dos Direitos Humanos. Ameaçado de morte diversas vezes, quando estava à frente da Associação dos Pescadores dos Cantos dos Rios (Apescari) Luís Carlos organizou manifestações no mar e na porta da empresa trans nacional ThyssenKrupp Companhia Siderúrgica do Atlântico (TKCSA) devido à devastação ambiental e uso privado de locais que eram bons viveiros de pesca na baía de Sepetiba no Rio de Janeiro. Hoje é obrigado a viver longe do lugar em que nasceu e não vê a família a mais de um ano. O que se passa na baía de sepetiba foi parar nos jornais da Alemanha, por aqui Luís Carlos tentou falar com o ministro da pesca até com o senhor presidente, ambos não o receberam. O pescador teve mais voz no parlamento alemão do que no brasileiro, isso é vergonhoso.

Ontem li uma entrevista com Oswaldo Sevá, engenheiro e doutor em geografia e ele fez colocações interessantes que uso como inspiração para escrever esse parágrafo. O grande argumento daqueles que são a favor de empreendimentos como Belo Monte é que essas obras são de interesse público, o velho argumento de que a senhora que vive na beira do rio no interior do Pará tem direito a ter uma geladeira. Eles desapropriam as pessoas de suas terras e afirmam que com esse tipo de empreendimento o país será beneficiado em detrimento de uma minoria. Isso NÃO É verdade! Os beneficiários são uma minoria rica, grandes oligopólios que controlam a eletricidade e os equipamentos elétricos, os minérios e a metalurgia, o agronegócio, o petróleo e o gás. Os grandes projetos hidrelétricos tem origem na dependência de grandes setores das industrias de metal, celulose e alguns ramos da química em relação à energia elétrica. O que elas querem? Reduzir suas planilhas de custos. Há a transformação do interesse dos oligopólios em um discurso de interesse social, objetivos de empresas privadas transformados em interesses públicos. Essa é uma ofensiva global, e de acordo com Harvey e Arrighi é uma crise de super-acumulação, uma crise financeira, uma demonstração exuberante da famosa lei da “queda tendencial das taxas de lucro”. E quais seriam os alvos preferenciais? Locais onde há recursos naturais estratégicos.

Para aumentar a minha indignação, lembro-me de uma terça feira dia 27 de abril de 2010 em que o senhor estava na cidade de Cruzeiro do Sul no Acre e manifestou o desejo de inaugurar obras antes do fim de seu mandato e para manifestar sua irritação com a demora na concessão de licenças ambientais fez novamente chacota com o anfíbio encontrado no Rio Grande do Sul. A ironia reside no fato do senhor estar no estado em que nasceu, viveu e morreu assassinado Chico Mendes. Cidadão que buscou a união dos seringueiros e indígenas na defesa da floresta amazônica, homem que participou da fundação do partido dos Trabalhadores e tornou-se dirigente do partido no Acre, recebeu o prêmio Global 500 entregue pela ONU por sua luta em defesa da floresta e de seu povo. Esse tipo de atitude é uma ofensa ao homem que foi Chico Mendes, à memória e história de um povo.

O que direi agora não é novidade. Acredito que nosso pais poderia ser melhor se houvesse mais investimentos em ciência e educação, não precisaríamos ver nossos governantes adotando posturas levianas em relação ao meio ambiente, às pessoas, à história do país e adotando discursos capitalistas ultrapassados que estão consumindo o país como um câncer.

Respeitosamente

João Paulo Gravina Ribeiro de Castro

Biólogo CRBio Nº: 70965/04-D

Referências

Agência FAPESP http://www.agencia.fapesp.br/materia/12572/impactos-do-codigo-florestal-sao-analisados.htm Acesso em 9 de Agosto de 2010.

Alho, C.J.R. 1994. Distribuição da Fauna num Gradiente de Recursos em Mosaico. Em: Cerrado: Caracterização, Ocupação e Perspectivas (M.N. Pinto org). 2ª Ed. Editora Universidade de Brasília, Brasília. Pp.213-262.b

Brasil de Fato http://www.brasildefato.com.br/v01/agencia/nacional/vila-de-201cpescadores201d-so-no-nome/?searchterm=pescador%20barragem Acesso em 9 de Agosto de 2010.

Brasil de Fato http://www.brasildefato.com.br/v01/agencia/nacional/uma-historia-real-de-pescador/view acesso em 9 de agosto de 2010.

Brasil de Fato http://www.brasildefato.com.br/node/5784 Acessso em 2 de março de 2011.

Cunha, R., Organizações não governamentais: Conquistas e dificuldades na defesa da Mata Atlântica. 2005. In: Mata Atlântica e a biodiversidade. Franke, C.R.; Da Rocha, P.L.B.; Klein, W.; Gomes, S.L.(orgs). Universidade Federal da Bahia, Bahia: p. 417-444

Jornal o Globo http://oglobo.globo.com/pais/mat/2009/09/10/desmatamento-no-cerrado-duas-vezes-maior-do-que-na-amazonia-767548895.asp Acesso em 30 de julho de 2010.

Myers, N.; Mittermeier, R.A.; Mittermeier C.G.; Fonseca G.A.B.; Kent, J. 2000. Biodiversity hotspots for conservation priority. Nature 403: 853-858.

O Show de Arquivo http://www.oarquivo.com.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=463:chico-mendes-parte-1&catid=77:nacionais&Itemid=432 acesso em 30 de julho de 2010.