domingo, 21 de dezembro de 2008

Meu Mundo


Era um mundo um pouco diferente do que conhecemos. Neste, também havia muitas formas de vida, mas a humanidade deste mundo andava lado a lado com o animal que era parte de seu espírito. Cada ser humano possuía um forte laço com o espírito de um animal que os acompanhava sempre. Era um mundo em que a solidão não existia, as pessoas nasciam e morriam junto com seus companheiros eternos. Além de companheiros, refletiam a personalidade do humano ao qual estavam ligados. Na infância os animais não tinham forma definida, podiam mudar de forma dependendo da situação. Isso se explica pelo fato das crianças não terem ainda uma personalidade bem definida. Com a maturidade os animais tomavam sua forma definitiva. As pessoas são dotadas de traços muito fortes de caráter que refletem na forma de seu companheiro animal.

Tudo o que um sentia o outro sentia, suas mentes e corpos são ligados e muitas vezes as palavras são desnecessárias; apenas um olhar basta. Os homens e seus animais nunca podem se distanciar, isso causa uma dor muito intensa e pode levá-los à morte. Era um mundo interessante pois as pessoas conheciam e podiam ver o animal que existe em cada uma delas, eles sempre estavam ali, caminhavam lado a lado. As pessoas tinham mais respeito umas pelas outras e pelas diversas formas de vida que existiam, não era preciso que existissem homens que explicassem às outras pessoas a importância de se preservar a diversidade de vida na terra; todos compreendiam. A diversidade de traços de personalidade dava forma aos animais das pessoas, mas seus companheiros eternos só poderiam assumir a forma de animais que existiam no planeta; caso uma espécie fosse extinta, com ela também desaparecia uma combinação de traços de personalidade únicos que jamais voltaria a aparecer. A única exceção em que os animais de adultos podiam mudar de forma ou assumir formas de animais que não existiam tais como dragões, fênix, grifos, cavalos alados, era quando os homens estavam sobre o efeito de alguma espécie de planta que provocava intenso relaxamento ou sob efeito do álcool. Era muito interessante observar como as pessoas e seus animais se divertiam nessas situações.

Eles e seus animais haviam crescido juntos, a forma da lebre se fixou antes. Pertenciam a povos diferentes, mas eram inseparáveis. A lebre refletia a sagacidade, inteligência e esperteza daqueles que tem raciocínio rápido e estão sempre prontos para argumentar e agir. Era mestre na arte do improviso e com tais atributos não era difícil para ele enrolar aqueles não dotados da mesma sagacidade. Um exemplo bem simples e prático que reflete a lebre que existia nele eram os jogos de baralho. Quase nunca se dava mal porque raramente encontrava um adversário que não pudesse enganar ou derrotar com uma boa estratégia, estava sempre a um passo a frente de todos. Seu amigo sabia disso e também tinha consciência que nunca era uma boa idéia dizer para ele: “duvido!” ou “vamos apostar?”, quando via alguém pronunciar tais palavras para seu amigo apenas esboçava um sorriso de canto de boca pois sabia que o cara já tinha perdido e nem sabia. Outra característica interessante era que sua companheira lebre falava mais que o normal para um animal e sempre o ajudava nas discussões ou jogatinas, era uma sinergia incrível.

O companheiro de seu amigo demorou um pouco mais para se fixar, mas acabou tomando a forma de um lobo cinzento fêmea. Ele tinha a necessidade de ver coerência e sentido naquilo que observava, as pessoas tinham que ser aquilo que elas falavam que eram. Não era dotado da sagacidade e inteligência de seu velho amigo, mas era firme e bastante consciente. O que explica a forma lupina de sua companheira. Lobos são predadores de topo de cadeia alimentar, caçam presas maiores que eles e precisam fazer isso em bandos; eles tem consciências que o bando é fundamental para a sobrevivência, não são arrogantes e sabem que devem manter-se firmes durante o inverno rigoroso que enfrentam todos os anos. Sua personalidade foi moldada desta forma e por isso não tolera os que fraquejam em momentos difíceis, se quiserem fraquejar que o façam longe dele.

Com o tempo a lebre conheceu um belo gato siamês, animal gracioso, delicado e um pouco tímido, características que compartilha com sua companheira. Era uma relação bela de se ver, uma relação de carinho e cuidado recíproco, o velho amigo e sua lebre realmente pareciam precisar de alguém com tais qualidades para olhar por eles. Seu amigo adora ver os dois juntos, apesar de sua descrição, toda vez que os encontra isso fica bem claro com o incessante balanças de rabo de sua loba.

Essas são apenas pessoas comuns desse mundo e com freqüência podemos encontrá-las sentadas em uma mesa de bar jogando conversa fora, discutindo dramas pessoais ou simplesmente tomando uma cerveja e gargalhando de seus animais assumindo formas bizarras e interessantes. Fazem parte de uma realidade em que a celebração, o respeito e o amor à vida são tudo o que há de mais sagrado.

sábado, 20 de dezembro de 2008

Travessa dos poetas de calçada


Esse é um texto de um grande amigo meu, e com sua autorização posto aqui. Abração Gabiroba!


Aos poucos, o sol fica mais intenso e eles saem das sombras, das cinzas, da poeira de asfalto. Do orvalho matinal que seca no calçamento de pedra portuguesa eles brotam do concreto fértil, pelas travessas, pelas ruelas que de abandonadas, começam a engolir gentes atraídas para seus recônditos, para seus prédios. À medida que o centro enche, eles nascem, montam suas estruturas em madeirite, em pequenas telas de exposição. Iniciam longas conversas, fumam pelos cantos marcando território, observam as pessoas chegando para o trabalho. São os poetas da calçada, trazendo todo o lirismo chinês, toda sorte de pequenos badulaques, cintos, roupas, bolsas, comidas. Estendem pedaços de lona no chão de pedras brancas encardidas por borracha de sola de sapato. Os passos que vão crescendo e se tornando incessantes após a alvorada vibram em seus peitos, em seus corações, em suas vozes. Bonés, camisetas regadas, anéis de aço, bigodes em rosto de pêlo raro.

Fumando na porta do prédio vizinho ao Theatro Municipal, acompanho um rapaz desenrolando sua lona azul, tirada de dentro de uma bolsa preta entulhada de produtos chineses de baixa qualidade. Monta uma estrutura sanfonada de finos pedaços de madeira, tira umas tabuinhas, alinha as mesmas sobre a estrutura. De dentro de sua bolsa revela ao mundo o lirismo que ele trouxe para o burocrata cansado se relaxar em casa, um massageador à pilha. Observo as caixas do produto, umas fotos de pessoas em roupa de academia, aquelas de lycra colada ao corpo, de pé, fazendo poses e sorrindo com o massageador na mão, aplicando em partes variadas do corpo. Fotos ocidentais, produto made in China, seguramente. Ele sequer termina a montagem, um gordão em cavanhaque e terno-e-gravata o aborda para experimentar aquela poesia concreta, de rua. Imagino-o, gordaço, sentado no sofá, em frente à TV, numa sala imunda de algum surbúrbio, vendo rede bobo, o ventilador de teto chacoalhando lentamente, o suor escorrendo farto de suas axilas e testa, a mão brilhante com o massageador deitado sobre sua pança, vibrando suas carnes, suas gorduras.

Não há como negar. É a pura poesia de calçada. Infelizmente o gordão não faria naquela noite um ritual bizarro de onanismo corporal com aquele consolo gigante. Achou caro ou algo do tipo, deixou o poeta de calçada barganhando ao vento, gritando preços especiais enquanto o
terno mal cortado partia apertado no corpo do gordão. Mas os gritos continuam cortando a rua, no meio do barulho de sapatos, de salto-altos que mulheres parecem andar como cavalo recém-ferrado, de gentes pensando alto, conversando, absortas por algo místico do mundo. A multidão beira o infinito, incessante, perene.

Do outro lado, um rapaz termina de montar a exposição de um catálogo de DVDs. Mais da metade dele com a poética de falos gigantes em traseiros e bucetas de loirinhas que parecem ter quinze anos. Negros com pirocas de jegues, estourando as bucetinhas oxigenadas de mulheres
fazendo cara de prazer enquanto lágrimas correm por seus rostos. 'O melhor do anal', 'brasileirinhas', etc, etc. Vezenquando uns gatos pingados param numa postura pensativa como a daqueles que param na banca de jornal vizinha para ler as notícias nos jornais expostos nas laterais. Rapazes lavam o chão encardido com um limpa tudo, os círculos alvos pelo calçamento comprovando a eficácia de uma química que destrói suas mãos já há muito calejadas. Quando desço, depois das 18h, todos já se recolheram à sombras.

*A travessa dos poetas de calçada é uma fenda no meio de prédios
gigantescos na treze de maio, cinelândia.

domingo, 7 de dezembro de 2008

Rafael


Rafael era seu nome; ele andava pela terra como qualquer outro mortal, mas era um anjo mandado para a terra com a missão de compreender sentimentos e percepções humanas: Amor, medo, tranqüilidade, ódio, paixão, rancor. Gabriel, arcanjo da mais alta hierarquia, acreditava que seus irmãos poderiam crescer espiritualmente e compreender melhor a fascinação de Deus pelos homens. Rafael foi voluntário e logo que chegou a terra sentiu uma dor física imensa, como a de um bebe que respira pela primeira vez, mas o anjo veio na forma de um homem adulto, estatura mediana, barba, cabelo curto e pele negra. Caiu na terra em um beco escuro; estava atordoado com a dor, assustado correu para sair do beco e foi atropelado por um carro que passava na rua. Foi levado a um hospital onde conheceu Pietra, a enfermeira que lhe deu conforto e cuidou de suas feridas. Logo de cara eles se sentiram atraídos um pelo outro, com o tempo ele a amava com toda a intensidade que um homem pode amar uma mulher; graças a ela experimentou sensações que ele nunca imaginou existir.

Rafael e Pietra ficaram juntos por três anos. Nesse intervalo de tempo ele conheceu Antônio, o homem mais descente com o qual ele teve contato. Tornaram-se amigos e com freqüência tomavam uma cerveja ao som de bandas como Lynyrd & Skynyrd, CCR, Eric Clapton, apenas com o intuito de desfrutar da companhia um do outro,trocar idéias, ouvir boa música e sentir suas percepções ligeiramente alteradas. Quando Pietra deixou Rafael ele sentiu uma dor terrível; não era algo físico, mas o desespero de saber que nunca mais poderia olhá-la nos olhos e sentir a cumplicidade que só os que se amam sentem, não poderia mais sentir o corpo dela procurando pelo dele em uma noite fria; teria que se acostumar com a ausência do cheiro dela por perto pois o amor que ela sentia havia acabado. O anjo sofreu por três longos meses, principalmente após vê-la com outro. Sentiu ira, rancor e conheceu a besta que existe dentro de todos os homens. Apesar de rejeitado e com orgulho ferido, se esforçou muito para não julgá-la mal e não o fez. Ela jamais ouviria uma palavra grosseira de sua parte, ele que controlasse seus demônios.

Alguns dias foram mais difíceis que outros e Antônio sempre esteve presente. Rafael pode compreender o que seria a amizade, seres humanos são animais sociais e precisam de companhia. No princípio o anjo acreditava que o melhor mesmo seria caminhar sozinho por esse mundo e que ele mesmo que cuidasse de suas feridas, mas Antônio lhe ensinou que as coisas não são bem assim. Sua história com Pietra e sua amizade com Antônio lhe ensinaram a ser paciente com as pessoas, a não deixar que seu amor tire sua dignidade e a enfrentar a dor de sua solidão; só agindo desta forma percebeu que sua natureza humana pode obter paz e assim cresceu emocionalmente. Sua missão estava cumprida, agora ele era capaz de compreender a fascinação de Deus pelos humanos. Apesar de todo o sofrimento que eles podem sentir eles são capazes de se recuperar.