sábado, 5 de setembro de 2009



Cássio acorda com uma gargalhada alta que ecoa do corredor para dentro de seu quarto. A cama ao seu lado está vazia.
“Julho já acordou, provavelmente está babando na fila do café”.

Olha pela janela gradeada e vê o sol brilhando num céu azul imponente, levanta e se volta mais uma vez para a janela, agora vê o pátio de entrada, a grama está verde e molhada.

“Talvez uma das maiores preocupações da administração do local, a grama verde na época da seca dá uma idéia de zelo para os nossos parentes. E não adianta tentar mudar a idéia deles, a grama verde é uma prova muito mais confiável do que as palavras de um louco”.

Cássio já estava acostumado com a rotina, mas não havia desistido de sair do sanatório. Tentava se parecer o mais normal possível, mas a doutora Carla insistia em mantê-lo lá durante meses cada vez mais cumpridos.

Um enfermeiro, magro, baixo, sempre com uma barba por fazer, entra no quarto e se dirige ao Cássio.

-Dormiu bem, Cássio?

-Sim, obrigado. – Cássio gostava do enfermeiro Lucas, era o único que nunca perdia a paciência com os pacientes, nem mesmo com os mais difíceis.

-Vamos, está na hora do desjejum e dos remédios. Julho está na fila e está insistindo para que alguém te chamasse.

Julho se afeiçoara ao seu companheiro de quarto, Cássio costumava dar atenção aos seus devaneios em conversas que costumavam durar horas. Na verdade Cássio descobrira o quão fascinantes as idéias daquele lunático podiam ser se alguém prestasse atenção nelas. A doutora Carla já o havia censurado por incentivar as “alucinações” de Julho! Cássio às vezes pensava ser esse o motivo principal para ainda estar naquele prédio para loucos.

Ele compreendia que a doutora o havia ajudado muito, a situação em que se encontrava quando entrou era dramática. Sua mulher e filhos nem vinham visitá-lo no começo, depois de um tempo sua mulher vinha sozinha e há pouco tempo trazia seus dois filhos. Era tão bom vê-los, e tão doloroso não poder voltar para casa com eles no final da visita, talvez devesse diminuir as conversas com Julho.

Cássio se encaminha para o refeitório e lá está Julho, ansioso, mudando o peso de seu grande corpo de uma perna para a outra. Julho, ao ver seu grande amigo, acena rapidamente mostrando o lugar à sua frente.

-Guardei o lugar na minha frente para você, as maçãs podem acabar! – no fim, Cássio sempre dava sua maçã a Julho, que sempre recusava de primeira, mas depois de um tempo, ao ver a maçã parada na bandeja, sempre a pegava e saía correndo para frente da TV, em outro cômodo.
-Muito obrigado Julho.
-Dormiu bem, Cá?
-Dormi sim, aqueles comprimidos que me dão antes de dormir me derrubam!
-É porque eles não querem que a gente sonhe!
-E por que eles não querem isso? – Perguntou Cássio, sendo lembrado porque era tão difícil não
conversar com aquele maranhense lunático. Cássio sabia que Julho já havia sido um homem muito bem sucedido, dono de uma empresa de softwares. Já disseram a ele que Julho fora um grande gênio, criara softwares geniais, mas que de alguma forma perdera a empresa. Foi aí que as coisas ficaram ruins. Seu nome não é Julho, mas ele insisti em ser chamado assim!
-Porque nossos sonhos nos mostram a verdade!
-Verdade sobre o que?
-Sobre tudo! Sobre a grama lá fora, sobre as maçãs, sobre a chuva ou a falta dela! Sobre nossos filhos e nossas mulheres, sobre o que é certo e sobre o que está torto. Explica o porquê da vida, do mundo, do nada, de tudo!
-Você sonha, Julho?
-Sonhava, é por isso que estou aqui, é para reconquistar meus sonhos, eu parei de ver a verdade!
-Você acha que a doutora Carla sonha?

Julho pensa por alguns segundos, depois responde:

-Ela te ajudou?
-Sim...
-Então deve sonhar.
-Mas se ela quer nos ajudar, então por que não quer que eu sonhe?
-Você não deve estar preparado para a verdade. Mas acho que se você se esforçar você vai conseguir sonhar, ou até mesmo lembrar o que você deveria ter sonhado essa noite.

Cássio começou a pensar sobre a importância dos sonhos, e que já lera que apesar de ninguém saber exatamente para que servem os sonhos, eles são muito importantes para a saúde mental. De certa forma Julho poderia ter razão. Começou a tentar lembrar do seu sonho daquela noite.

A fila começou a andar, Julho ficou entusiasmado, Cássio foi andando seguindo o ritmo da pessoa a sua frente, foi servido de um mingau fedido e fumegante e quando estava preste a pegar sua maçã a memória do seu sonho reapareceu de uma vez. Um turbilhão de imagens esmurraram seu cérebro e no fim, uma voz rouca, num grito, lhe falara:

-Ainda falta muito!

Cássio solta uma gargalhada assustadora, joga o mingau na cabeça da pessoa à sua frente, segura sua maçã com a boca e sai correndo em direção à janela gradeada. Num grito abafado pela maçã começa a esmurrar as grades.

Julho se vira para o pobre homem queimado pelo mingau e diz:

-Desculpe ele, ele não estava preparado...

2 comentários:

João Paulo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
João Paulo disse...

Nossa... Muito bom velho. Fera mesmo.